quarta-feira, 11 de julho de 2012

Ilha das Flores






A Ilha das Flores, que intitula o curta-metragem de Jorge Furtado, é um local na cidade de Porto Alegre aproveitado como depósito para o lixo. Embora seja o assunto central do filme, o lugar aparece somente quando os instantes finais se aproximam e, antes disso, observa-se a trajetória de um tomate desde a colheita ao descarte por uma dona-de-casa, até que chega ao lixão da ilha, numa dinâmica que escancara, com várias retomadas e em detalhes, o processo de geração de riquezas numa sociedade de consumo, com enfoque particular nas desigualdades desse sistema.

Apesar do enfoque, convém ressaltar que são usados alguns (e bons) recursos para manter um teor de impessoalidade do texto. Um desses recursos é o modo de narrar do ator Paulo José, sem grandes variações no tom de voz, sem exprimir qualquer emoção. O texto é trazido de forma meramente expositiva, com um ar quase enciclopédico, sem argumentações explícitas por conjunções ou outros elementos de co-texto, sem metáforas. Desta forma, trata-se com a mesma naturalidade e gelidez a definição de "humano" e um acidente nuclear. Em contraste com a aparente frieza, em vários momentos são exibidas imagens chocantes, como a do porco abatido, dos judeus vítimas do holocausto nazista e das crianças disputando alimentos entre o lixo que sequer servia de alimento para os porcos.

Há, contudo, várias nuances de humor no decorrer das cenas. Ao mencionar a proibição católica ao lucro na Idade Média, por exemplo, religiosos figuram com expressões fechadas numa pintura; posteriormente, porém, as mesmas figuras sofrem uma manipulação e aparecem sorrindo, imagem que coincide com a explicação acerca do lucro livre. Outro momento, — senão cômico, ao menos inusitado, — é a aparição de uma garrafa de Coca-Cola numa pintura egípcia antiga, no momento em que se diz que "tudo sob e sobre a face da Terra tem valor de troca por dinheiro". Com efeito, a própria cadência repetitiva e dicionarística da narração confere um tom irônico à obra, de certa forma.

Com esses recortes, o filme não apenas aponta as calamidades que ocorrem na Ilha das Flores, mas também as estendem ao Brasil, o que já é sugerido desde o início com a execução da protofonia de "O Guarani", do maestro Carlos Gomes, tema da Voz do Brasil, o programa de rádio governamental que contempla os ocorridos da — diga-se de passagem, vergonhosa — política nacional. De fato, a mesma música anteriormente mencionada, quando distorcida ao som da guitarra, remete de certa forma a Jimmy Hendrix em Woodstock, e estende o protesto ao mundo inteiro, como numa denúncia das misérias que assolam a humanidade.

O curta termina então como uma manifestação velada contra as políticas que há tempos conduzem populações aos lixões, que põem seres humanos abaixo de porcos. Termina em desabafo, com um discurso sobre liberdade, "palavra que o sonho humano alimenta, que não há ninguém que explique, e ninguém que não entenda".

Com meus redundantes agradecimentos ao Professor Luís Carlos,
idealizador dessa idéia, disseminador dessa semente.
publicado por Daniel Andrade

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